LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMERCIAL: legitimidade do controle da propaganda e do marketing no Brasil e limites do discurso comercial

FREEDOM OF COMMERCIAL SPEECH: legitimacy of advertising and marketing control in Brazil and limits of commercial speech

Raphael Piffer dos S. Rodrigues

RESUMO
O artigo discute a liberdade de expressão na seara comercial, notadamente em peças publicitárias. O objetivo deste artigo é inquerir sobre o controle do Direito brasileiro sobre publicidade e marketing e seu enquadramento à luz do direito de liberdade de expressão. O método de abordagem adotado é o método dedutivo-analítico a partir da técnica de revisão bibliográfica e da análise de documentos pertinentes. Trabalha-se a legitimidade do controle da propaganda e do marketing no Brasil, incluindo as eventuais restrições aplicáveis, bem como sua fundamentação, e, ainda, sua autorregulação, buscando identificar os limites do discurso comercial vis-à-vis a proteção constitucional da liberdade de expressão.

Palavras-chave: Liberdade de Expressão Comercial; Limites da Liberdade de Expressão Comercial; Liberdade da Arte; Direito do Consumidor.

ABSTRACT
The article discusses freedom of speech in the commercial field, notably in advertisements. The purpose of this article is to inquire about the control of Brazilian law on advertising and marketing and its framework considering the right to freedom of speech. The approach method adopted is the deductive-analytical method based on the bibliographic review technique and the analysis of pertinent documents. It works on the legitimacy of control of advertising and marketing in Brazil, including any applicable restrictions, as well as its grounds, and even its self-regulation, seeking to identify the limits of commercial discourse vis-à-vis the constitutional protection of freedom of speech.

Keywords: Freedom of Commercial Speech; Limits on Freedom of Commercial Speech; Freedom of Art; Consumer Law.

1. INTRODUÇÃO

A publicidade é constantemente fonte de polêmicas e embates judiciais. O discurso mercadológico é ontologicamente persuasivo e se vale, portanto, de técnicas destinadas primeiramente a chamar a atenção, mesmo chocar em determinados casos, e de convencimento, nem sempre exclusivamente racional, mas também sentimental.
Ocorre que este discurso pode ter sua intensidade e conteúdo questionados sob diversos aspectos.
A finalidade do discurso publicitário é convencer o consumidor, por meio de uma narrativa baseada em técnicas de venda, de modo a induzir desejo e necessidade em seu imaginário.
As técnicas publicitárias são psicologicamente astutas e, por vezes, podem até se valer mesmo de argumentos enganosos e abusivos.
​​​​​​ Potenciais efeitos de ações antiéticas do discurso publicitário são temas de interesse social, considerando que o mercado de consumo tem na propaganda um princípio motor, mas também em relação à proteção da saúde pública exposta a risco por desinformação e do resguardo do Direito do Consumidor, bem como em razão da proteção da livre concorrência contra concorrência desleal.
A seguir, desenvolve-se um breve estudo acerca dos fundamentos dos limites constitucionais à liberdade de expressão comercial.

2. LIBERDADE DE EXPRESSÃO
A liberdade de expressão ou manifestação, assim como a liberdade de consciência e crença, é espécie do gênero liberdade de pensamento.
A Constituição da República consagrou o direito à liberdade de expressão ou manifestação em seu notório rol de direitos fundamentais constante de seu art.5º, especificamente em seus incisos IV e IX, reforçando o preceito ao vedar a censura em seu artigo 220.
O núcleo do direito à liberdade de expressão ou manifestação consiste na faculdade de exteriorização da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação social.
Não obstante, o exercício abusivo desta faculdade é passível de ressarcimento ou reparação de danos materiais e morais, em razão de ofensa a direito, individual ou metaindividual, de pessoa natural ou jurídica, sem prejuízo do direito de réplica ou resposta, proporcional ao agravo.
Para possibilitar a obrigação indenizatória decorrente do exercício abusivo do direito à liberdade de expressão ou manifestação, estipulou o constituinte a proibição do anonimato.
O direito à liberdade de expressão ou manifestação, portanto, não é absoluto, sendo limitado por outros direitos igualmente constitucionais, mormente o direito à inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem.
Conforme posição consagrada da jurisprudência, “se ao direito à livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação social contrapõe-se o direito à inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem, segue-se como consequência lógica que este condiciona o exercitamento daquele, atuando como limitação estabelecida pela própria Constituição da República para impedir excessos e abusos”
Para se resolver possíveis conflitos entre o direito à informação e o direito à intimidade, o critério segundo a melhor doutrina e jurisprudência é que o direito à intimidade se sobrepõe ao direito à informação, salvo tratando-se de evento público, o qual o indivíduo tenha interesse em conhecer.
Nesse sentido, a jurisprudência esclarece que “esse arcabouço legislativo espelha a dimensão da proteção concreta a intimidade e privacidade, a qual, em regra, cederá ao interesse público de conhecimento desses dados tal como ocorre no interesse de informar e na manutenção de informações relacionadas a memória histórica”.
Por fim, é importante destacar que a liberdade de expressão é direito indissociável da democracia. Neste sentido, pode-se dizer que a liberdade de expressão é um instrumento necessário para o exercício democrático, na medida que os discursos livres capazes de alterar o convencimento dos eleitores e, portanto, alternar os mandatários do poder político. Este compromisso do constituinte com a democracia refletiu-se ainda na proibição da censura, quer seja de natureza política, ideológica e artística.

3. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMERCIAL

O direito à liberdade de expressão comercial é sustentado por anunciantes, agências de publicidade e veículos de comunicação como desdobramento do direito à liberdade de expressão ou manifestação do pensamento.
Em que pese haver discussões sobre este enquadramento do discurso publicitário como ato comunicativo caracterizado como expressão do pensamento ou como atividade econômica e, portanto, submetida aos dispositivos acerca da ordem econômica, constantes nos artigos 170 e seguintes da Constituição de 1988, o artigo abordará o tema como desdobramento da liberdade de expressão, considerando que as implicações do discurso publicitário sobre os assuntos abordados a seguir, são reflexos da veiculação de suas mensagens e visam a incutir determinado modo de pensar para fomento da atividade de consumo.

4. LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMERCIAL E A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

Como já fora anteriormente, o presente artigo analisa a legitimidade do controle da propaganda e do marketing no Brasil a partir de potenciais efeitos de ações antiéticas do discurso publicitário, buscando identificar os limites do discurso comercial vis-à-vis a proteção constitucional da liberdade de expressão.
O mercado de consumo é o alvo de atuação principal da atividade publicitária, derivando deste os demais temas de interesse social afetos à liberdade de expressão comercial.
A seguir são expostas temáticas da liberdade de expressão comercial em relação ao mercado consumidor.

4.1. Limitação do Discurso de Propaganda por Abusividade
O Código de Defesa do Consumidor (“CDC”) estabelece alguns princípios norteadores da atividade publicitária, entre eles:
1. a necessidade de identificação da publicidade (artigo 36) ;
2. a proibição de publicidade enganosa ou abusiva (artigo 37);
3. a vinculação contratual (artigos 30 e 35);
4. a inversão do ônus da prova (artigo 38);
5. a transparência (artigo 36, parágrafo único); e
6. a correção do desvio publicitário e a lealdade (artigo 4º, VI).
O CDC também é um parâmetro importante para a configuração da publicidade abusiva ou enganosa, sendo o mesmo fonte de conceito legal, além de tipificar crime relacionado à prática das referidas condutas (artigo 67).
Na linha da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ):
“É considerada publicidade enganosa a que contém informação total ou parcialmente falsa, ou que, mesmo por omissão, é capaz de induzir o consumidor a erro (art. 37, §§ 1º e 3º, do CDC).
O art. 31 do CDC traz relação meramente exemplificativa de algumas informações que devem constar na publicidade de um produto ou serviço, tais como “características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”.
No entanto, para a caracterização da ilegalidade omissiva, a ocultação deve ser de qualidade essencial do produto, do serviço ou de suas reais condições de contratação, considerando, na análise do caso concreto, o público alvo do anúncio publicitário. (grifo nosso)
Deste modo, depreende-se da jurisprudência determinados elementos segundo os quais a discurso de propaganda deve se pautar, quais sejam:
1. a transparência, que proscreve a indução ao erro
2. o respeito à saúde e segurança dos consumidores
3. a circunscrição desses deveres às qualidades essenciais do produto publicizado
4. a avaliação do cumprimento desses deveres à luz do caso concreto e de acordo com o público-alvo do anúncio publicitário
​Com efeito, quando da edição do CDC o comércio eletrônico ainda não era uma realidade no Brasil, embora suas diretrizes a ele se apliquem, tendo, inclusive, o Decreto 7.962, de 15/3/2013, que regulamenta o CDC em relação a contratação no comércio eletrônico consignado algumas destas diretrizes especificamente, dentre elas:
1. a necessidade de identificação da publicidade (artigo 2ºe artigo 3º);
2. a proibição de publicidade enganosa ou abusiva (artigo 1º e artigo 6 º);
3. a vinculação contratual (artigo 4º );
4. a transparência (artigo 5º ).
Deste modo, com maior razão deve a limitação do discurso de propaganda por abusividade ser aplicada ao comércio eletrônico, dado seu maior potencial de alcance e imprevisibilidade do público receptor da mensagem.
Depreende-se, portanto, que o discurso publicitário consumerista encontra-se submetido a limites, tanto pela legislação, quanto pela jurisprudência. Outrossim, conforme expõe André Andrade, “algumas normas infraconstitucionais preveem restrições à liberdade de expressão, a despeito de não haver previsão constitucional expressa a esse respeito. Tais restrições serão legítimas quando tiverem por objetivo a compatibilização daquela liberdade com outros princípios protegidos constitucionalmente. A necessidade de convivência social aponta para a harmonização entre os direitos fundamentais”.

4.2. Limitação do Discurso de Propaganda para Defesa de Vulneráveis
Como já fora dito, o grau de alcance do discurso e imprevisibilidade do público receptor da mensagem devem ser considerados para os limites da publicidade.
São exemplos de riscos de eventuais mensagens de propaganda abusiva sobre grupos mais vulneráveis a mensagens tendenciosas e de manipulação:
1. idosos e endividados em relação a ofertas de crédito rápido por financeiras, sem a devida transparência dos efeitos de juros compostos ou comprometimento de receita;
2. crianças em geral; e
3. pessoas com tendências compulsivas, em especial em relação à presente avalanche de sites de apostas esportivas.
Neste sentido, a liberdade de expressão utilizada na mensagem publicitária deve observar não apenas as diretrizes do CDC e regulamentações conexas, mas também em razão de outras normas constitucionais como o princípio da dignidade humana (artigo 1º, III); a proteção à dignidade e bem estar do idoso (artigo 230); a proteção ao desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência da criança e adolescente, resguardando-os de exploração (artigo 227), bem como nas diretrizes da ordem econômica segundo a Constituição serem fundadas, dentre outras bases, na defesa do consumidor, sendo prevista ainda a finalidade desta mesma ordem econômica assegurar a todos existência digna (artigo 170).
A jurisprudência é pródiga em exemplos de aplicação de restrições à propaganda para defesa de vulneráveis.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5.631, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) afirmava a inconstitucionalidade da Lei nº 13.582/16, da Bahia, que proíbe a comunicação mercadológica dirigida a crianças nos estabelecimentos públicos e privados de educação básica, alegando a norma violar a competência privativa da União de legislar sobre publicidade comercial (artigo 22, XXIX) e os princípios constitucionais de liberdade de expressão, livre iniciativa e livre concorrência, além do fato de o artigo 220, parágrafo 4º da Constituição proibir a publicidade de produtos taxativamente, dos quais não se tratava.
O Supremo Tribunal Federal, julgou constitucional a lei baiana, aduzindo que “a Constituição não admite que a inação da União em regular a publicidade infantil nesses lugares possa ser invocada para impedir a adoção de medidas por parte de Estados para cumprirem as obrigações que decorrem diretamente dos instrumentos internacionais de proteção à saúde e à infância” e que a lei “atende à proporcionalidade a restrição à liberdade de expressão comercial que visa a promover a proteção da saúde de crianças e adolescentes e que implica restrição muito leve à veiculação de propaganda, porquanto limitada ao local para o qual é destinada, delimitada apenas a alguns produtos e a um público ainda mais reduzido”.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, já afirmou a ilegalidade de campanhas publicitárias de fundo comercial que “utilizem ou manipulem o universo lúdico infantil” e que “se criança, no mercado de consumo, não exerce atos jurídicos em seu nome e por vontade própria, por lhe faltar poder de consentimento, tampouco deve ser destinatária de publicidade que, fazendo tábula rasa da realidade notória, a incita a agir como se plenamente capaz fosse”.

5. ​LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMERCIAL E A CONCORRÊNCIA EMPRESARIAL
No caso da concorrência empresarial, em que pese, o objetivo também seja o aumento de participação no mercado, o discurso publicitário busca convencer o consumidor indiretamente a partir do estabelecimento da ideia de que determinado produto é superior à concorrência.
Já foram comuns peças publicitarias que promoviam a chamada guerra das marcas. Não raramente o discurso publicitário e mercadológico pode ser instrumento de concorrência desleal, notadamente a publicidade comparativa e depreciativa.
“A propaganda comparativa é forma de publicidade que identifica explícita ou implicitamente concorrente de produtos ou serviços afins, consagrando-se, em verdade, como um instrumento de decisão do público consumidor” .
A publicidade comparativa é perfeitamente aceita pela jurisprudência do STJ, que, embora reconheça existência de tensão entre as normas que asseguram proteção à marca e aquelas que garantem a livre concorrência, entende que a existência de menção específica à marca registrada por terceiro em anúncio publicitário não pode, isolada das circunstâncias da hipótese concreta, ser considerada ilícita” .
Em reforço, o STJ também já afirmou que “a publicidade comparativa não é vedada pelo Código de Defesa do Consumidor, desde que obedeça ao princípio da veracidade das informações, seja objetiva e não abusiva”.
A jurisprudência já estabeleceu parâmetros para o marketing comparativo. Neste sentido, “propaganda comparativa ilegal é aquela que induz em erro o consumidor, causando confusão entre as marcas, ocorrendo de maneira a depreciar a marca do concorrente, com o consequente desvio de sua clientela, prestando informações falsas e não objetivas” .
Ademais, “para que viole o direito marcário do concorrente, as marcas devem ser passíveis de confusão ou a referência da marca deve estar cumulada com ato depreciativo da imagem de seu produto/serviço, acarretando a degenerescência e o consequente desvio de clientela”.
Deste modo, a publicidade calcada na comparação empresarial é lícita, salvo se o discurso for abusivo e eivado de finalidade difamatória, sendo esta averiguada na maioria dos casos por inverdades espalhadas.
Nestes casos, conforme já dito, o exercício abusivo da liberdade de expressão é passível de ressarcimento ou reparação de danos materiais e morais, em razão de ofensa a direito, individual ou metaindividual, de pessoa natural ou jurídica, sem prejuízo do direito de réplica ou resposta, proporcional ao agravo.

6. LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMERCIAL E USO DO HUMOR, ARTE E TEMAS SENSÍVEIS

A publicidade visando a chamar a atenção do consumidor notabiliza-se pelo uso do humor e de discursos irreverentes, muitas vezes, valendo-se também da arte, notadamente artes gráficas para este mesmo intento.
O humor e a arte têm em comum o fato de serem instrumentos da criatividade capazes de gerar controvérsias e, com isso, produzir o efeito de atenção pretendido pela publicidade.
Ocorre, que por vezes, esta controvérsia pode se originar de referências a temas sensíveis, como a religião, a moralidade, à sexualidade, pautas sociais e etc.
Segundo André Andrade, “é válido discutir e questionar a qualidade ou o valor moral de uma obra de arte ou literária. Mas essa discussão passa ao largo da questão jurídica. Moral e direito não se confundem”.
Ainda segundo André Andrade:
“Há muita confusão conceitual entre os limites éticos e jurídicos do humor. Não existem temas a priori proibidos ao humor. À princípio, tudo pode ser objeto de manifestação humorística, incluídos assuntos delicados ou que constituam tabus na sociedade. Uma das caracteristicas desse tipo de manifestação é, exatamente, subverter os costumes e desafiar os padrões sociais e morais. Por isso, religião, sexualidade, gênero, etnia, inclinações políticas e outros temas sensíveis não estão fora do alcance do humor.
É compreensível que piadas ou representações que envolvam determinados temas, muitas vezes com o uso de expressões vulgares, Palavrões e profanidades, desagradem ou deixem desconfortáveis pessoas mais conservadoras, austeras ou com menos senso de humor. Mas isso não constitui motivo juridicamente válido para censurar ou restringir uma manifestação humorística”.

Não obstante, a arte e o humor não podem ser usados como instrumento para conferir imunidade a intenções que, se expostas diretamente, seriam objeto de sanção jurídica.
Sobre esta limitação Andrade esclarece que:
“No campo estritamente jurídico, o humor, como toda e qualquer, forma de expressão, esbarra onde a liberdade de manifestação em geral deve parar. Não há uma imunidade especial, decorrente da Chamada “licença humorística”, conferida às manifestações que tenham a pretensão de fazer rir. A comédia, a graça, o chiste e outras manifestações de comicidade não estarão protegidas pela liberdade de expressão quando violadoras da honra, da imagem, do nome, da intimidade e de outros direitos constitucionais integrantes da personalidade humana”.
Todavia, os limites da arte e do humor dentro da liberdade de expressão, e no caso deste artigo, na publicidade, ainda estão em construção, sendo avaliados sempre nos casos concretos.
Pode-se citar a caso emblemático onde a publicidade questionada versava sobre diálogo com cunho sexual e reproduzia o seguinte diálogo: “- Posso trazer meu namorado para dormir em casa, passar a noite fazendo sexo selvagem e acordando a vizinhança toda? – Claro filhote! – Aí paizão, valeu! Sabia que cê ia deixar. – Ufa! Achei que ela ia me pedir o carro!”.
Em ação coletiva de consumo contra publicidade da revista automobilística veiculada em programa de rádio, o Ministério Público de Santa Catarina alegou ser a publicidade manifestamente abusiva, por tratar de tema moralmente sensível por abordagem de tema sexual, pedindo ainda, além da compensação pelos danos morais coletivos, que fosse vedada a veiculação da propaganda.
A sentença deu provimento ao pedido, proibindo a divulgação da publicidade e exigindo da ré a compensação por danos morais. Em apelação, o TJSC reformou parcialmente a sentença, isentando a compensação financeira, mas mantendo a vedação de veiculação.
O STJ reestabeleceu a sentença sob argumento que, “tendo o acórdão recorrido reconhecido a reprovabilidade do conteúdo da publicidade, considerando-a abusiva, não poderia ter deixado de condenar a recorrida a ressarcir danos morais coletivos, sob pena de tornar inepta a proteção jurídica à indevida lesão de interesses transindividuais.”
Em outro caso notório, o Procon – SP multou estabelecimento comercial por utilização de mensagens consideradas desrespeitosas e abusivas feitas pela empresa em seu perfil em uma rede social. Conforme o auto de infração, “todas essas publicidades desrespeitam valores da sociedade, como a dignidade da pessoa humana e o núcleo familiar”.
O auto de infração aplicado cita frases que pretensamente faziam humor a partir de crimes violentos que geraram repercussão nacional. O órgão fiscalizador estadual alegou que fora infringido o artigo 37, parágrafo 2º do CDC, por veicular publicidade abusiva, por ser discriminatória e incitar à violência ao satirizar homicídios de repercussão nacional e internacional.
O órgão ainda fundamentou a multa com base em humor sobre a recente pandemia de COVID-19, que poderia induzir o consumidor a se portar de forma contrária à saúde pública.

7. LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMERCIAL EM TEMAS LIGADOS À SAÚDE PÚBLICA
Em relação à saúde pública, as limitações à liberdade de expressão no discurso publicitário são mais evidentes, até mesmo em razão da repercussão geral relativa a esta temática.
A Constituição da República restringe explicitamente a publicidade de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias.
Ademais, não obstante a precaução que deu causa à vedação, o constituinte preocupou-se ainda em determinar que lei federal estabelecesse os meios legais que garantissem ao consumidor se defender da propaganda de produtos, práticas e serviços que pudessem ser nocivos à saúde e ao meio ambiente
Em obediência ao preceito constitucional, a Lei nº 10.167/2000 dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas.
Por sua vez, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde possui resolução que dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos.
Nitidamente, a justificativa para a limitação do discurso publicitário é o enfraquecimento de seu poder persuasivo e, consequentemente, dos danos à saúde pública e ao erário.
Ademais, apesar da restrição à liberdade de propaganda, há a preocupação de resguardar a liberdade dos destinatários, de modo que sua decisão por determinado comportamento prejudicial à saúde seja a mais livre possível e desprovida de estímulos, notadamente sobre públicos vulneráveis, quer do ponto de vista intelectual, psicológico ou social.
A jurisprudência já se manifestou em favor da limitação do discurso publicitário em favor da saúde pública. Sobre o tema, o STJ emitiu informativo reconhecendo a abusividade de publicidade de alimentos direcionada, de forma explícita ou implícita, a crianças, considerando, especialmente os altos e preocupantes índices de obesidade infantil, um grave problema nacional de saúde pública.

8. AUTORREGULAÇÃO PUBLICITÁRIA

É interessante notar que, mesmo o setor publicitário não defende uma liberdade irrestrita de discurso.
O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária é um código de autorregulamentação da atividade, criado pelo setor para disciplinar o conteúdo dos anúncios a partir de boas práticas e autorreflexões éticas.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que a publicidade, enquanto ato comunicativo pode invocar a proteção dos direitos fundamentais de liberdade de expressão e liberdade de pensamento.
Não obstante, a liberdade de expressão de maneira geral, assim como as liberdades fundamentais de modo geral, não são absolutas, mas devem se autolimitar à medida em que o produto de seu exercício colide com núcleos de outros direitos fundamentais.
Se a expressão do pensamento não goza de liberdade absoluta, com mais razão não deve gozar de liberdade irrestrita o pensamento publicitário, que não se destina exclusivamente à defesa de opiniões pessoais, mas à atividade econômica por meio do estímulo ao consumo ou adoção de determinado comportamento a partir de técnicas de persuasão, inclusive emocionais, ainda que, para este intento, possa a expressão de opiniões e pensamentos seja instrumental e condição sine qua non.
Deste modo, restrições ao discurso mercadológico tanto quanto aquelas às liberdades de expressão de manifestação de pensamento encontram amparo constitucional, devendo a atividade publicitária buscar sua legitimidade dentro de padrões éticos, principalmente a partir de deveres de transparência, boa-fé e respeito ao público destinatário.
Sem maiores polêmicas, dada a previsão legal e a jurisprudência cristalina, em razão dos deveres de transparência se legitima a limitação do discurso de propaganda por abusividade.
A boa-fé, por sua natureza de princípio geral de direito, deve informar também o discurso publicitário, dado que este fomenta e antecede uma futura relação econômica. Deste modo, o princípio geral legitima a limitação do discurso de propaganda para defesa de vulneráveis, os quais devem ser preservados de mensagens que explorem ardilosamente suas debilidades etárias, mentais e emocionais.
Com efeito, em que pese a legitimidade para limitações do discurso nestes casos, essas restrições devem ser todas a posteriori e avaliadas no caso concreto, sendo a censura ou controles prévios sempre reprováveis.
A boa-fé é padrão ético ainda aplicável para legitimar a limitação do discurso de propaganda em casos de concorrência empresarial, sendo razoável a restrição deste discurso quando nitidamente aviltante e difamatório, porém, ilegítimo quando a publicidade obedecer o princípio da veracidade das informações, seja objetiva e não abusiva, conforme já se manifestou a jurisprudência dominante.
Tema mais delicado é sobre a o uso do humor e das artes retratando temas sensíveis que possam ferir suscetibilidades e ofender determinados grupos. Conforme já fora dito, a censura ou controle prévio são inadmissíveis, porém, com amparo no princípio da dignidade humana, discursos publicitários que, por meio do artifício artístico, escondam conteúdos de cunho depreciativo contra grupos ou indivíduos, ou ainda que ofendam a natural igualdade entre as pessoas ou, que, de qualquer forma, incitem a violência, devem sofrer restrições.
Também o direito fundamental à saúde pode servir de critério de limitação à liberdade de expressão comercial. Com efeito, a justificativa para a limitação do discurso publicitário é o enfraquecimento de seu poder persuasivo e, consequentemente, dos danos à saúde pública e ao erário.
O setor publicitário não é insensível à importância do tema e, corroborando esse entendimento de submissão do discurso mercadológico a padrões éticos, se sujeita voluntariamente a padrões prévios e normas de condutas consideradas por si como boas práticas referendadas por produtores e pelo público ao longo do tempo.
Todavia, em que pese essa preocupação do setor, ela não é capaz de evitar polêmicas, primeiro pela natural necessidade de uma publicidade chamar a atenção de seu destinatário e, segundo, pela crescente diversidade de visões sobre temas sensíveis inerente ao mundo multicultural contemporâneo.
Por fim, cabe destacar que, ainda que a conclusão do presente trabalho seja pela possibilidade de limitação do discurso mercadológico nos casos mencionados e pelos fundamentos elencados, a questão, como a liberdade de expressão de modo geral, continuará a ter uma casuística polêmica, notadamente em relação a temas sensíveis que possam ferir suscetibilidades e ofender determinados grupos devido justamente à prodigalidade da sociedade multicultural contemporânea em criticar padrões de discurso até recentemente aceitos, gerando praticamente uma impossibilidade de definição de um padrão ético comum a todas as pessoas e grupos sociais.
Neste sentido, se reforça a importância do papel do Poder Judiciário, o qual deverá defender o alicerce constitucional de vedação à censura prévia, mas deverá, por outro lado, contribuir para a construção de uma jurisprudência atenta ao multiculturalismo contemporâneo e que auxilie a pacificação do tema por meio do fornecimento jurisprudencial de paradigmas éticos seguros.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Liberdade de Expressão em Tempos de Cólera. Rio de Janeiro: 2020.
DE MORAES, Guilherme Peña. Curso de Direito Constitucional (p. 220). Atlas. 12ª Edição. São Paulo: 2020. Edição Kindle.

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