O último toque dos gigantes

Logo IBCONO último toque. O último gigante.

Quem não lembra, o último abraço do velho pai. Daquele beijo da saudosa mãe. Da risada do amigo que se foi ou até mesmo daquela criança correndo e que não existe mais?

São lembranças dolorosas. Não sabíamos que aquele encontro seria a última vez. Não foi especial. Tínhamos algo mais importante para fazer. Simplesmente seguimos em frente sem saber que aquele havia sido o fim entre vocês. O último ato. As cortinas se fecham em silêncio às suas costas. Não há efeitos especiais. Não há músicas. Acontece sem que possamos perceber. Foram encontros casuais que terminam mornamente, mas que o tempo como caprichoso transporte para o destino, inescapavelmente nos conduz em linha reta para os Campos Elíseos. É a última estação. Desembarcamos. É o fim. Não há outra oportunidade. Todas as palavras foram ditas. Todos os gestos foram realizados. Tudo foi feito. Se foi insuficiente, já não há mais recurso.

Não há mais tempo para quem entra na eternidade.

É o ponto final de uma história que vai continuar ecoando, mas que perde seu volume a cada novo pôr do sol. No futuro, seremos apenas uma foto em algum canto de uma casa. Depois, nem isso. Os nossos saberão muito pouco sobre nós, para logo a seguir, mal conseguirem explicar quem eram aquelas pessoas naquela antiga foto e que já se perdeu. Essa é a sina de uma pessoa comum. Mas não a de pessoas extraordinárias.

Explico:

Em 1942, torpedos alemães já haviam repousado 33 navios brasileiros em solo oceânico e levando consigo, 971 pessoas sem qualquer tipo de possibilidade de defesa. A covardia pura e simples de ceifar vidas apenas por ter a oportunidade de fazê-la.

Por pressão popular, – uma tradição, o povo brasileiro sempre se antecipou aos seus líderes quando o assunto é a defesa de sua nação. Foi assim na Questão Christie, na Guerra do Paraguai e também na Segunda Guerra – logo entramos oficialmente para o grupo de nações que lutavam contra o fascismo e o nazismo. Contra as tiranias que sequestraram a Europa, África, Ásia e Oceania. Éramos a única região do mundo fora da guerra. Um oceano separava o inferno, do paraíso. A proposta não era boa:

Enfrentaríamos o exército mais preparado do mundo;

Não conhecíamos as nossas armas;

Nem as dos inimigos;

Não sabíamos a doutrina;

Não estávamos adaptados ao clima frio;

Não conhecíamos o terreno;

Não falávamos a língua do inimigo, nem do amigo, nem dos países ocupados.

Mesmo assim, surgiram inicialmente três mil voluntários. Trinta centenas de brasileiros se apresentaram instantaneamente para esse sacrifício. Eles atravessaram o mar, enfrentaram o treinamento rápido e rigoroso. Aprenderam a combater ao lado dos americanos nas trincheiras e sob fogo inimigo. Mataram, morreram e enterraram seus irmãos. Participaram da vitória na maior batalha da história da espécie humana. Voltaram para casa e encontraram o desprezo.

Ajudaram e libertar o mundo de ditadores, mas tinham um em casa lhes esperando. Ajudaram a derrubá-lo. Ajudaram a construir uma nova democracia. Mais uma vez participaram da vitória e mais uma vez encontraram o desprezo.

Os anos foram passando. Aqueles homens forjados no aço, moldados pelo forno da guerra e no grande altar do sacrifício humano, continuavam a receber o desprezo como troco por tudo o que fizeram.

Gerações de brasileiros nasceram sem que soubessem de seus feitos ou de sua existência.

A música da copa de 1970 cantava que éramos 70 milhões em ação. Hoje somos cerca de 210 milhões. Todos lembram daquela seleção de onze homens que encantou o mundo nos campos do México e que venceu a Itália na final, mas a quase totalidade desconhece qualquer história dos 20 mil que sangraram nos campos da Itália e principalmente dos que lá encontraram o seu final.

A primeira vez que soube da existência desses gigantes eu estava no quartel em 1991. Escutamos o corneteiro tocar uma melodia desconhecida. Ainda estávamos no curso básico, mas um cabo que nos auxiliava em alguma instrução, anunciou que aquele era:

“O Toque de Presença de Ex-Combatente”.

A melodia era bonita, mas, eu não fazia a mínima ideia do que significava ser um ex-combatente. Dois colossos se apresentaram naquele instante: a minha ignorância e a falha gritante de todos os meus 15 anos escolares.

Fui me informar na biblioteca e descobri a estatura daqueles senhores que ainda estavam no meio de nós. Alguns se apoiavam em bengalas. As pernas que subiram os morros italianos sob fogo e em direção ao inimigo, agora falhavam. Não suportavam mais o peso do corpo. Eram conduzidos em cadeiras de rodas. Eu passei a entender o porque de todo o quartel se agitar com o toque de presença de um febiano. O passado quando entra pela porta. O presente pára para venerá-lo. Todos olham de longe. Os mais afortunados conseguem trocar algumas palavras. Os que hoje se preparam para uma improvável guerra futura, encontram aqueles que estiveram na maior de todas as guerras.

Os anos vão passando e os gigantes cada vez mais, atendem ao chamado do senhor de todos os exércitos.

Cheguei a conhecer o Marechal Levy, portador do último bastão de Marechal da história do Brasil. Um homem simples, sorridente e quieto. Eles são quietos. Sempre foram quietos. À Pátria tudo deram e dela nada exigiram. Nem mesmo compreensão. Lutaram o bom combate, terminaram suas carreiras e aguardam a coroa da justiça que será entregue no último de seus dias. A eternidade, como diria Stéphane Mallarmé, transformá-los-á naquilo que eram.

Todos aqueles que conheceram a histórias dos gigantes, logo querem contar para outros. Há pressa. Eles estão recebendo suas coroas. Tão silenciosos quanto a todos que deveriam honrá-los. As homenagens serão sempre insuficientes e inexplicáveis todas as décadas de desprezo.

E a morte? Questionava Albert Camus:

“Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.”

Muitos já choram hoje. E muitos outros chorarão no futuro pela descoberta tardia. Irão tentar manter viva a árvore da lembrança. Restará o mito e a saudade. Sim, eles todos irão. Todos os aviadores já foram. Em breve, não existirão mais Cobras Fumantes. Eles não poderão mais contar suas histórias. Tivemos décadas para mostrar gratidão e só será possível pedir desculpas. O destino irá parar na última estação com o seu último passageiro. Desembarcará o último que recebeu o toque de “Presença de Ex-Combatente”. A última testemunha. A razão do toque. O portador do toque.

Os gigantes já não mais estarão entre nós.

Seremos enfim, herdeiros da nossa omissão e receberemos do destino um sussurro daquilo que eles mais escutaram em vida:

O toque de silêncio.

 

Escrito por Laudelino Amaral de Oliveira Lima
Sobrinho neto do Tenente Carlos Augusto do Regimento Sampaio que era sobrinho Trineto do Duque de Caxias.

Foto extraída do site Tecnologia e Defesa

Originalmente publicado na Revista Terça Livre n. 43, 8 maio de 2020.

Cedido ao site do IBCON com autorização do autor.

2020-05-09

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